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Nossas redes
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A carta nunca enviada

a chave
Foto de João Guimarães

Caro colega,

Sei que há muito evito pronunciar o seu nome e que já não sinto amor pelos textos como antes, quando líamos e ríamos defronte ao lago. Você riria, como sempre riu de mim ao escutar a palavra “defronte”, apesar de ser um gênio. E, como todo gênio, você é um admirador da simplicidade, talvez por isso nossa amizade nunca funcionou como esperávamos funcionar. Foi a mais intensa e amorosa amizade que eu já tive e a mais divertida também, afinal foi com você que eu aprendi a fugir da complexidade e falar daquilo que é essencial para a vida, a vida.

Hoje já não tenho coragem de falar com você e omito a palavra mesmo quando nos esbarramos, como se nunca tivéssemos conhecido a corrente e o laço da amizade. Era divertido ser bobo ao seu lado e, mais que os beijos dados, era uma terapia ficar encarando as estrelas longínquas no silencioso domingo, com o único toque dos nossos pés ou daquela mão que desafiava a ordem dos olhares ferozes.

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Fazíamos maratonas de filmes, selecionávamos um diretor ou um ator como tema das nossas escolhas para no fim debatermos um assunto qualquer e não aquele tema escolhido, nosso plano de sermos sérios desaparecia diante da nossa paixão pelas bobagens corriqueiras do dia a dia. Descobrimos que nós éramos nosso próprio assunto e perdoamo-nos pelo egocentrismo condescendente.

Não sei bem porque te escrevi, só quis poder dizer outra vez o nosso “meu caro, amigo”. Lembrei-me que preferíamos nos tratar como remetentes, talvez a velocidade das relações não seja o nosso maior interesse. Por isso, estimado colega, ainda fico fitando a caixa do correio, esperando uma mensagem qualquer, pois de tanto acreditar nas suas palavras, eu fui vencido pela ideia utópica de que numa segunda-feira indefinida eu receberia, desprevenido, a sua carta me desejando uma ótima semana.

Não penso mais nas diferenças ou nos nossos caminhos. Não penso em mais nada, acho que entendo um pouco a paz que há em não questionar as causas primeiras que tanto me perturbavam o sono e que geravam os nossos atritos.

Descobri, estudando as lembranças, que eu aprendi a entender a beleza do solo, o segredo das folhas, o mistério dos frutos e, com a reflexão, pude valorar mais o sabor das frutas, pois você traduziu os cálculos do verde e me presenteou com o melhor das suas faculdades.

Vez por outra, pego-me rabiscando poemas, aprendi o sabor das palavras te vendo declamar e eu sei que já te chamei de “malogrado leitor de versos, indelével trovador” num dos meus malditos poemas chamuscados de ira, mas sinto que eu sou o seu maior admirador e que minto nos meus raquíticos versos.

Você, com certeza, ficaria estupefato se me visse concordando com as complexidades e dubiedades do seu estranho signo. Eu, como um bom cético, nunca dei valor à toda aquela pseudociência que alimentava as suas analises, confesso que divagava enquanto você me explicava as sutilezas da astrologia. E cada concordar meu era, na verdade, o desejo da trégua da nossa guerra ideológica. E, reforçando, sim, aprendi que você é a representação mais exata do seu signo.

Tudo bem, sei que você nunca leria um simples verso meu, entendo que você não suporte as minhas experimentações estéticas baratas ou o amontoado de filosofia que eu tento poetizar por falta de talento com as letras, mas eu agradeço, pois foi por você que eu arrisquei riscar, rabiscar e borrar caracteres incompreensíveis.

Querido poeta, talvez os dias nos roube as cores do antigo diálogo, pois o nosso mundo monocromático era tingido pela poética da sua simplicidade e eu me apoiava nisso. Esqueci que posso também tingir os meus dias e reaprendi a sorrir. Você quebrou a barreira do meu abraço e me devolveu o dom da fala.

Por isso, escrevo-te essas palavras vazias, sem objetivos, como quem deita na grama e perde uma tarde, perde uma noite e ao final das horas perdidas abraça o cúmplice do ócio, desejando que o dia seguinte seja tão especial como o dia perdido. Perco-me nas palavras como me perdia nas estrelas daquele domingo defronte ao lago e te desejo uma bela semana, Senhor poeta, eterno amante da chave de Drummond.

Do seu velho amigo, Senhor S.

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Autor: Alisson Carvalho

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