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Nossas redes
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Dezenove de março de sessenta e quatro, por Alisson Carvalho

Foto: Ana Candida

Um ruído percorreu o corredor sombrio, não havia ninguém naquela escola só um estranho barulho que aterrorizava até os insetos. O calendário empoeirado continha alguns rabiscos, algumas datas riscadas com pincel vermelho destacando o dia quinze dos demais dias daquele mês de março maçante. Um dos armários dos alunos estava visivelmente arrebentado e vazio, a etiqueta revelava o nome da “sortuda” aluna: Carla.

Odineide observava o corredor através de uma pequena janelinha de vidro de dentro da sala de aula, parecia tudo vazio. Havia pouco tempo que a professora perdera os direitos trabalhistas e fora obrigada a retornar ao trabalho mesmo com a licença maternidade vigente. E agora aquilo já não importava, pois a escola virou alvo dos interventores do Estado.

A professora rememorou aquele fatídico outubro de dois mil e dezoito quando tudo começou a mudar, um novo governo assumiu depois de um pleito que rendeu cinquenta e sete vírgula setenta e nove milhões de votos absolutos para o seu candidato. Atrelada nas ideias fajutas e factoides absurdos a professora fez campanha para sujeito. Ela ignorou todos os erros e suspeitas por cumplicidade ideológica, apenas por isso.

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Seu intuito era se opor ao governo anterior, pois sentia que o mundo estava correndo demais, avançando muito para sustentar aquilo de dividir espaço com tanta diversidade. E toda aquela mudança representava uma ameaça ao futuro. E aquela escola era o melhor exemplo de destruição dos valores que ela conhecia, pois as crianças estavam impregnadas de conhecimentos ao ponto de questionarem a autoridade do Estado, a eficiência das hierarquias e, pior, a legitimidade de Deus.

Odineide rasgou o adesivo – que levava grudado na bolsa – em prol dos militares, suas mãos tremiam ao lembrar da cena do paredão de crianças sendo revistadas e espancadas pelo exército. Não era para ser daquele jeito, ela imaginou uma outra forma de intervenção, ela sonhou com o retorno da tal ordem relembrada pelos avós, mas o que presenciou foi a destruição do direito de ser, de existir, de pensar, de criticar e das violações das liberdades.

Chorou por horas enquanto o som dos disparos ecoavam pela escola. Eram apenas crianças, nada mais, eles não eram bandidos. Ninguém escutou os professores, não sobrou uma única voz para interceder pelos pequenos.

O caos já tinha passado, mas as marcas de explosões dos coquetéis molotov estavam espalhadas pelas ruas. A noite começou a surgir e a nuvem de gás lacrimogêneo se dispersava aos poucos, mas não era pelo ardor nos olhos que a professora chorava.

Tudo se repetiu naquele quinze tal qual a Marcha da Família com Deus pela Liberdade lá naquele dezenove de março de sessenta e quatro. Os demônios eram os mesmos comunistas do passado, fantasmas nunca encontrados, uma perseguição que deixou como vestígio inúmeros desaparecidos e cemitérios clandestinos.

Odineide sentiu que tinha algo no ar, mas não quis fraquejar, não quis ser confundida com a oposição, não podia passar pela vergonha de admitir seu equívoco, então no estertor dos conflitos ela preferiu emudecer.

Um a um os opositores foram deixando o jogo de maneira cada vez mais paradoxal, gradualmente o cenário foi mudando, os absurdos foram sendo relativizados e quando ela apercebeu-se do mundo já estava numa sala quase vazia sendo observada pelos interventores, sentinelas treinados na arte de detectar qualquer ideologia perigosa para a educação da sociedade.

A professora sentiu saudades de Carla e desejou com todas as forças que a sua ausência não representasse o pior, que ela estivesse segura em algum canto com aquela sagacidade que só ela tinha. Um disparo calou o seu sofrimento.

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